quinta-feira, 23 de abril de 2020

‘Com Amor, Simon’ mostra como as cores se encontram fora da caixa


PARA: vocemesmoqueestalendo@gmail.com
DE: perdidonomundo@gmail.com
ASSUNTO: Como ser quem você é sem ter medo?

Foto: Capa do livro Com Amor, Simon
Gui Zambonini
Simon Vs. A Agenda Homo Sapiens’ tem 272 páginas distribuídas nas dimensões de 21 cm de altura x 14 cm de largura. Se, por acaso, as folhas desprendessem do livro, seria possível construir quase três armários de 90 laudas para resguardar qualquer ser humano, o qual meça até 170 cm. Ao levar-se em conta que, cada linha de uma página possui cerca de 50 caracteres e, uma folha completa tem por volta de 30 linhas, haveria a possibilidade de encontrar 1.500 dígitos de uma só vez. Se multiplicar cada sinal, símbolo, figura e gesto lido por dois – página frente e verso –, ao menos a pessoa dentro da caixa estaria acolhida por palavras adoráveis. Mas seria o suficiente para ela ser feliz?


Em março de 2013, o painel de pesquisas Ibope divulgou uma informação sobre os gays no Brasil. De acordo com o instituto, 57% dos entrevistados afirmaram não assumir a sexualidade deles, por medo de rejeição da própria família; 35% disse esconder-se dos amigos por puro temor. Desde então, não houve mais atualizações sobre esses dados.

Simon Spier não é brasileiro. Ele é um adolescente de 16 para 17 anos, do subúrbio de Atlanta, Geórgia (um dos estados americanos que, até o início dos anos 2000, tinha leis que criminalizavam atos entre pessoas do mesmo sexo). Fã de Harry Potter e de músicas de fossa, a vida dele não é tão diferente quanto a de outros jovens: acorda cedo; frequenta o ensino médio; faz piadas de tudo e de todos para esquecer-se das próprias hesitações; tem amigos incríveis; convive com pessoas não-tão-inexplicáveis-assim; é viciado em Oreo; não estuda com tanto apuro mas vai bem nas provas; possui duas irmãs e pais viciados em realities shows; e esconde segredos como qualquer um – inclusive de si mesmo.

O lugar preferido de Simon não poderia ser outro: o quarto dele. É lá que os pensamentos transitam entre rotina e felicidade; obrigação e perplexidade; medo e amenidades. Foi sentado em frente à tela do notebook, lendo a página de CreekSecrets (site de fofocas do colégio), no Tumblr, que conheceu Blue. A postagem falava sobre a sensação de estar escondido ao mesmo tempo que exposto, em relação a ser gay.

“Ele falou sobre o oceano entre as pessoas. E que o objetivo de tudo é encontrar uma margem até a qual valha a pena nadar. Eu precisava conhecer esse cara.”

Foi a partir de uma troca de e-mails que tudo começou. Porém, quando o assunto é saber quem você é de verdade, cada um possui um armário próprio para esconder-se. No caso de Spier, cujas mensagens assinava como Jacques, o Gmail tonou-se o maior refúgio. Às vésperas de completar 17 anos, as palavras trocadas e dispersas em frases jogadas, deram força para ele enfrentar o vazio do autoconhecimento e preencher a vida com algum sentido. Afinal, a filosofia de quando se é jovem é poder, de algum modo, observar as pequenas aberturas para externar as profundas inseguranças. E isso era possível com Blue.

A cada sorriso de Simon, uma cor era apagada dentro dele. Os tons apenas voltavam a se sobressair quando conversava pelo armário-eletrônico com o rapaz-da-mesma-escola-que-precisava-viver-também-às-sombras-para-não-sofrer-as-consequências-do-preconceito-dos-olhos-alheios.

Os pais da família Spier davam abertura ao filho para falar sobre qualquer assunto. Entretanto, como tudo virava um estardalhaço debaixo daquele teto de Geórgia, ele se recolhia ao vácuo das próprias vontades. As piadas heteronormativas do pai não ajudavam em nada, assim como a compreensão em excesso da mãe. Tudo o assustava. Ainda mais quando existe o receio de não corresponder ao que o mundo espera que um garoto de 16 anos seja.

Os parafusos das portas do armário de Simon despencam quando o colega de escola, Martin Addison (Martírio Abominável), o chantageia com prints de e-mails trocados com Blue. Em troca de manter o que ele sabe trancado e longe de ser exposto no Tumblr, Spier tem de aproximá-lo de Abby, a qual é apaixonada por Nick. Mas também há Leah e o amor dela reprimido por Nick, que também nutre algo por Abby. No meio de um pique-esconde de sentimentos, Simon depara-se com o dilema entre mexer com a vida dos melhores amigos ou ser consumido pelo medo de ser tirado à força da caixa.

“Podemos fingir que nada disso aconteceu e voltar ao normal?”

Às vezes, o problema da escuridão não está na lâmpada que não funciona, mas na fiação que a liga. Isto não é impresso às páginas dedilhadas da autora Becky Albertalli, porém, pode ser compreendido a partir da sensibilidade dos significados das entrelinhas perpendiculares criadas por ela. Martin, assim como qualquer pessoa, não tem o direito de arrancar ninguém da ansiedade dela. São escolhas com consequências, as quais demandam apenas as decisões de si mesmo. E esta, não havia sido a de Simon.

A escritora e psicóloga americana dosa a tela com pinceladas bem-humoradas para chegar ao tom certo do drama, cujas cores mais sombreadas a levam a transitar entre o cérebro e o coração; entre frases curtas de vivências a experiências de quase um parágrafo de apreensão; de discussões se há certo ou errado; se existe alguém, além do protagonista da própria história, que pode julgá-lo por algo que não se torna, mas que se nasce; que está na essência de quem ele é.

“(...) Branco não devia ser o padrão, assim como hétero não devia ser o padrão. Não devia existir nenhum padrão.”

Entre as páginas de Albertalli, o sair do armário torna-se um treino gradativo de postura – assim como foi a evolução do homem ao longo dos séculos, na transição de homo sapiens até ao que pode caracterizar-se como ser humano, hoje. É difícil dizer se há o conceito “daquele que sabe” quando o outro tenta tirar com intrepidez aquilo, o qual não o pertence. A sabedoria está na existência do respeito ao próximo, não na agressão ao sentimento dele.

Ser gay é tão bom e grandioso quanto ser um poeta, um astronauta, um descobridor dos sete mares ou hétero. É tão comum quanto a tabuada do dois; tão vivo quanto a dança ao vento; tão sutil quanto a voz do tempo. É temeroso como a esperança – engana quando percebe-se que não sobrou nada pelo qual esperar. É cruel quando visto como uma doença, enquanto a cura, é não curar-se daquilo que não é enfermo. É ser Simon Spier, é ser Blue, é ser quem você é de verdade.

“Você já tentou comer seus sentimentos? Ouvi dizer que Oreo pode ser terapêutico.”


Para anotar
Título: Simon Vs. A Agenda Homo Sapiens
Autora: Becky Albertalli
Gênero: Romance Juvenil
Editora: Intrínseca
Páginas: 272

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