sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Espelho, espelho meu, existe um reflexo mais errado do que eu?

Os olhares quiméricos do auto-retrato em uma pluralidade de visões criadas pela autoconsciência

Gif: Reprodução/Tumblr Welcome My World

O poeta mexicano Octavio Paz uma vez disse que “cada indivíduo é único e cada indivíduo é inúmeros indivíduos que ele não conhece”. Nesta paráfrase, a definição de auto-retrato torna-se uma afirmação de presença, ou melhor, um exercício de autoconhecimento. Entre extravios e clarões de lucidez, a pluralidade da imagem vai além daquilo retratado pelos olhares de quem enxerga e de quem se vê.
O pictórico da ilustração torna-se uma colagem à realidade. Entre tantos eu’stu’s e eles conjugados, o reflexo da materialidade vira uma combinação de sinais e simbologias construídas por sobreposições de camadas de vivências. O narcisismo dá espaço ao além do que o revérbero limita-se a ser e se contrapõe à transformação da matéria pela ideia, no caso, o retrato nada mais é do que um eu que se mostra como pura superfície.
No texto “O Caso do Espelho”, do escritor brasileiro Ricardo Azevedo, a simplicidade de um casal, cujo passado não se é descrito, mas referenciado em entrelinhas, ilustra como o efeito de captura de imagem pode ser intenso quando o reflexo de uma vida dura vai além do que os olhos veem.
Ao andar pelas ruas longe da “casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata” onde vive, o nobre homem depara-se com um espelho, no qual pensa ser o retrato do pai. Por um preço baratinho, ele o leva em um embrulho, guardando-o na gaveta da penteadeira. A mulher, por sua vez, entra em pânico ao mexer no espelho e encontrar uma “diaba mil vezes mais bonita e mais moça” do que ela. A esposa chora, grita e vira a casa de ponta-cabeça até ter uma explicação.
O paralelo criado revela a existência de dois mundos: o real exato e o real que os olhos permitem ver. A partir da auto-representação dos personagens de Azevedo, pode-se compreender que a visão que o indivíduo tem de si é auto-reflexiva. É um olhar desacelerado do tempo, como se o homem e a mulher estivessem isolados do mundo, em uma realidade construída pela autoconsciência e não por si mesmo.
A representação do perfeito é impossível, e a conformidade factual não agrega à figura a humanidade essencial para sorrir ao invés de julgar-se. O espelho da vida é mais denso do que o reflexo da alma. A cegueira falha no olhar de enxergarmos quem somos em disputa de quem devemos ser, e no como os outros nos veem. O auto-retrato nunca termina, porém ele não precisa ser invisível a si mesmo. Basta olhar com o coração.
Texto baseado no conto popular: O Caso do Espelho, de Ricardo Azevedo

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